quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Agra e Déli I - Imagens tristes do outro lado da janela


Visitar Agra e Déli foi importante por diversos motivos. O primeiro deles é que eu tive a possibilidade de ver as capitais do período do Império Mogol na Índia, que foi o assunto do meu primeiro trabalho sobre o país. O segundo, que foi a primeira viagem "sozinha" (com a cia da Betty, minha colega de quarto) pela Índia, sem a companhia da minha família indiana que, até agora, tinha feito o meio de campo entre a nova realidade e eu, me protegido, me entretido. O terceiro - e o que bateu mais fundo em mim - eu pude conhecer as condições de duas das maiores cidades indianas: seu ritmo dinâmico, sua desorganização, seus contrastes. Essa postagem, portanto, começa contando da viagem por esse último motivo.
Essa foto é em Jalandhar, imagem leve para o que eu vi depois

A viagem de 11 horas de trem de Jalandar para Agra me deu uma idéia do que são os arredores de uma metrópole por aqui. Foram muitos quilômetros de lixo, montanhas de lixo com pessoas morando nessas montanhas com suas barracas feitas de lona e lixo, queimando lixo pra se esquentar, separando lixo pra vender e, algumas vezes, até comendo lixo. Isso deve existir no Brasil, mas eu nunca vi. Deve existir mas não nessa quantidade. Pensa num "Ilha das Flores" em proporções indianas por 11 horas a poucos metros da janela do teu trem. Cabritos, porcos, corvos e crianças dividindo o mesmo habitat pútrido. Eu vi um bebê, que deveria ter no máximo uns três anos, peladinho, completamente sujo, com a linha inferior do olho pintado de Kajal preto (como a maioria dos bebes aqui) pegando com suas mãozinhas a comida da boca de um porco, que achava legumes fuçando no lixo empilhado. Um porco gordo, cinza, quatro vezes maior do que o nenê. Que brutalidade. Que horror. Não sei o que fazer com essa imagem na minha cabeça. A única coisa de que eu tenho certeza é de que eu deixei nessa viagem um terço da minha esperança num mundo melhor, do meu otimismo para com o hoje e com o futuro. Difícil não se achar ridícula estudando a distribuição das cadeiras no parlamento indiano enquanto isso acontece, na maior parte do país. Eu sei que é interligado, que a política importa para essas pessoas mesmo que elas não saibam, mas né. O nível de estudo das relações internacionais às vezes nos deixa esquecer da parte das vidas existem dentro do país. Ou não é as RI o problema e sou eu, jovem, alienada e achando que produzo conhecimento desse jeito. Difícil também não se sentir ridícula sendo feliz enquanto tanta gente sofre. Claro, às vezes somos prepotentes mesmo ao julgar a pobreza e acreditamos que não ter o que nós temos é sofrimento, quando na verdade, não necessariamente. Aquilo que vi, no entanto, não era condição de vida aceitável para nenhum ser vivo e é o cotidiano de milhões de pessoas. Como eu consigo dormir a noite com isso acontecendo no meu mundo? Com pessoas que são exatamente a mesma coisa que eu. A diferença é que elas nasceram duma barriga diferente, num lugar diferente. Que tipo de justiça é essa? E quem fez isso afinal? Eu? O capitalismo? A humanidade? Deus? É obvio que por mais que isso tenha me chocado absurdamente e esses questionamentos me perturbem por mais um tempo, hora ou outra retorno pro berço esplendido do meu existir, lendo, ouvindo música, saindo com os meus amigos, vivendo o que a sorte reservou pra mim, sem nem pensar no que ela reservou pra ninguém mais. Acho que eu ainda não sei integrar essa consciência em mim sem virar uma náusea pessimista ambulante, uma niilista. E pra viver melhor, esqueço. Talvez um dia eu aprenda. Espero um aprendizado profundo e silencioso, que demore o tempo da decantação dessas coisas que estão na superfície do meu ser para o meu Eu abissal. Vou me esforçar para enxergar a pobreza e a penúria brasileira, com a qual posso me comprometer mais em tentar mudar. Vou lembrar que as minhas decisões profissionais e pessoais podem contribuir muito para a perpetuação (ou atenuação) dessa realidade. Seriedade, portanto. Responsabilidade com tua vida, com lugar em que vives e com essas pessoas que também são tu, por que, afinal, todos estamos conectados na Unidade. 
Vista do meu Hotel, no centro da cidade

A condição já nas cidades também não era muito animadora. Ruas esburacadas, muita gente, muita sujeira, gatos nos fios elétricos, propagandas em cada canto disponível, ausência de calçadas, de placas e de organização. Cachorros de rua como eu nunca vi, caindo aos pedaços com doenças na pele. Por que também são cidades turísticas de um país pobre, sobra gente oferecendo serviços pros estrangeiros. Milhões de hotéis velhos e sujos, um do lado do outro, com seus anúncios em neon falhado, uma profusão inacreditável de tuc-tucs motorizados ou com bicicleta, guias turísticos implorando pra que tu contrate-os. Impossível não se entristecer (e não se irritar também, mas isso é assunto pro motivo 2 da importância da viagem). Eu não me chocava com Jalandhar por que é uma cidade de interior, pobre, sem muitos atrativos, mas essa era a capital do país. Complicado (pra não dizer "foda").

2 comentários:

  1. Olá Luiza.

    Através de um compartilhamento de um amigo no FB que deve ser amigo seu, cheguei até o seu blog. Li apenas esta postagem, e confesso que não fiquei estarrecido.
    Guardada as devidas proporções, temos o mesmo quadro em alguns lugares por aqui e você até citou a Ilha das Flores, para ilustrar.
    A minha visão de mundo é desesperançosa, embora haja pessoas indignadas com o que você vivencia aí, muito pouco se faz para que esse quadro mude. As redes sociais em sua maioria são compostas por pessoas alienadas e que gostam de continuar assim, infelizmente. Na terra em que você nasceu há muito que o poder público está corrompido e por mais que façam o povo aceita a tudo passivamente, exceto um ou outro que se manifesta contra este acinte, ou seja, dificilmente a situação irá mudar, e acho que você também já se deu conta disto.
    A realidade que você vê aí talvez acabe um dia, quando exterminarem com tudo. Políticas sociais passam ao largo de tudo isto. A visão macro está voltada para os grandes centros, dificilmente será extendida a essa gente. Triste isto.
    No entanto o que você faz hoje, registrando suas impressões é importante de alguma forma. É um legado que você passará as pessoas que lhe acompanham, seus filhos, um dia quem sabe e também a todos aqueles que aqui chegaram como eu. O futuro da humanidade é uma incógnita, enquanto tolerarmos que poucos mandem em muitos nada mudará para melhor.
    Gostaria imensamente de ter palavras de conforto mas isto também não adiantaria nada, a situação continuará a mesma.
    Seja como for, isto já mudou a sua visão de mundo, inobstante do quanto somos incapazes de mudarmos alguma coisa.
    Voltarei outras vezes para ler suas impressões, seus registros. Cuide-se bem.
    Luciano Hypólito.

    ResponderExcluir
  2. Isso é uma coisa que viajar me ajudou a perceber.. a vida em uma cidade rural, sem energia, com doenças mas com paz e condições de cada família se sustentar - a vida que eu vi - é melhor que uma vida marginalizada numa cidade grande. Talvez isso fosse meio óbvio, mas a serenidade do lugar que eu visitei (Ntungamo, Uganda) eu acredito que seja muito melhor do que a situação que tu presenciou, com pessoas que não conseguem viver pelos seus meios, que precisam se rebaixar ao que tu viu para sobreviver.

    Por alguns segundos na minha vida na África, vendo aquela coexistência linda com a natureza, a humildade das pessoas e a felicidade das crianças, me perguntei se precisamos de industrialização, de destruir a natureza, da civilização. Mas isso foi muito rápido né, pois parece que vai contra tudo que eu já estudei em RI. E também parece muito esnobe, pois semanas depois eu vou pra casa, viver no meu berço de ouro, enquanto eles nunca vão sair dali, nunca vão ter 1/10 do que eu tenho, e provavelmente vão morrer cedo.

    ResponderExcluir